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O que a psicanálise tem a ver com os cães?

  • Foto do escritor: Da Redação
    Da Redação
  • 2 de set.
  • 4 min de leitura

João Paulo Insuela Marques, filósofo e psicanalista clínico


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Quem já dividiu a casa com um cachorro sabe: eles não falam, e ainda assim dizem tudo. Um olhar demorado, o rabo que se agita como bandeira em dia de festa, ou aquele silêncio sério quando se encolhem debaixo da mesa — cada gesto é uma história inteira, sem precisar de palavras.

  A psicanálise, por sua vez, nasceu para escutar justamente o que não se diz. Freud, esse senhor austero de Viena, passava a vida entre livros e divãs, mas também entre silêncios e olhares. Se é para ouvir o indizível, por que não dar ouvidos ao que os cães têm a nos contar?

Freud tinha os seus. Pouca gente sabe, mas a famosa Jofi, chow-chow de porte majestoso, acompanhava o mestre em suas sessões. Ali, no tapete do consultório, ela tinha seus próprios horários: inquieta quando o paciente se agitava, tranquila quando o ar ficava leve, e — veja que elegância — quem marcava o fim da sessão não era o relógio, mas o espreguiçar de Jofi, como se dissesse: “Pronto, doutor, chega por hoje.”

  Mais do que curiosidade, isso nos mostra algo precioso: Freud, tão sério, confiava nos cães. Confiava neles porque não mentem, não disfarçam, não fazem intriga. São a presença pura, olhos atentos, rabo abanando.

 Jofi não era apenas uma cadela. Era co-terapeuta, fada de pelos dourados, intérprete silenciosa do que os humanos ainda não sabiam dizer. E talvez essa seja a lição mais terna que Freud nos deixou, sem perceber: a psicanálise e os cães têm algo em comum. Ambos escutam o que não se fala — e nisso, meu amigo, sempre há um pequeno milagre escondido.

  Mas não foi só Freud que percebeu a sabedoria silenciosa dos cães. Outros pensadores, em tempos e lugares diferentes, também se deixaram ensinar por esses mestres de quatro patas. Afinal, o que a psicanálise escuta no silêncio, a filosofia, muitas vezes, reconhece no olhar canino.

  Montaigne, no Renascimento, tinha o costume de observar seus cães como quem observa o destino da humanidade. Brincava com seu cachorrinho e se perguntava: “não sei se é ele que passa o tempo comigo ou eu com ele”. Havia ali um humor discreto, quase irônico, mas também um reconhecimento: talvez o animal filosofasse, silencioso e inteiro, sem livros nem plateia.

  Schopenhauer, por sua vez, descobria nos cães um alívio para sua descrença nos homens.

Enquanto a sociedade se escondia atrás de máscaras e convenções, o cão aparecia inteiro, sem fingimento, sem etiquetas. Amava-os justamente porque não esperava deles fingimento algum.

  Nietzsche, em suas caminhadas pelos Alpes, não resistia à companhia da cadela Lulú. Não era apenas um animal a seu lado: era vida em movimento, instinto, corpo que diz sim. O filósofo precisava de tratados para pensar a existência; o cão apenas corria, abanava o rabo e vivia. E, às vezes, era impossível não aprender algo com isso.

  E essa relação vai além da filosofia e da psicanálise: chega à saúde, à cura, ao cuidado. Nos corredores silenciosos dos hospitais, onde respiradores e passos apressados ditam o ritmo, algo muda quando cães de terapia entram. Eles não trazem apenas alegria momentânea: trazem alívio, presença, um modo de tornar o mundo um pouco mais suportável.

  Entre 2018 e 2022, no Hospital Universitário de Essen, na Alemanha, cem visitas de cães de terapia foram feitas na oncologia pediátrica. Sessenta crianças participaram. Antes, avaliavam a internação com nota 4,5; depois, 7,25. O estresse caiu de 4,25 para 1,0. E, mais importante, não houve aumento de infecções ou complicações: a presença dos cães era segura e eficaz.

  Em Düsseldorf, pacientes em fase terminal também se beneficiaram. Entre 2014 e 2015, as sessões reduziram ansiedade, dor e angústia. Risos apareceram, abraços se multiplicaram, famílias se aproximaram. Um cão na sala quebrava a rotina hospitalar e devolvia aos pacientes a sensação de estar vivos, mesmo nos últimos dias.

  A ciência confirma: cães reduzem cortisol, abaixam a pressão arterial, aumentam hormônios ligados ao prazer e ao bem-estar — ocitocina e serotonina. Menos estresse significa corpo mais resistente, travessia mais digna, momentos mais humanos, mais plenos, mais vivos.

  E é nesse encontro — entre ciência e sensibilidade, entre cuidado e presença, entre razão e afeto — que percebemos algo mais profundo. Cães e psicanálise nos ensinam a escutar o que as palavras não alcançam. Freud nos mostrou, com Jofi a seu lado, que há uma sabedoria silenciosa capaz de tocar a alma. O olhar de um cão revela verdades que a razão não alcança; sua presença acalma, conforta, ilumina.

  Aprender com eles é aprender a estar inteiro: no encosto da cabeça sobre o joelho, no silêncio compartilhado, na paciência que ensina a esperar sem pressa, a sentir sem medo. A vida verdadeira não se mede em palavras ou conquistas, mas na intensidade do olhar, na qualidade do afeto, na profundidade da atenção.

  E talvez a espiritualidade seja exatamente isso: perceber que o espírito se transforma, se eleva e se ilumina não em grandes gestos, mas nos detalhes silenciosos que nos ensinam o valor do ser, da presença, da escuta. Que os mestres mais profundos, às vezes, não falam, não explicam, apenas nos olham, nos tocam, e, em silêncio, nos fazem compreender aquilo que nos move e nos torna humanos.


 
 
 

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